terça-feira, 6 de julho de 2010
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Sociedade
Qual o lugar dos ciganos no mundo moderno?
Muitos poetas e romancistas já evocaram os ciganos em seus versos e prosas, de Federico García Lorca e Alexandre Dumas, passando por Gil Vicente e Gabriel García Márquez, cujo cigano Melquíades tornou possível que, numa remota tarde em Macondo, José Arcadio Buendía levasse seu filho Aureliano para conhecer o gelo, dando início à saga de uma estirpe condenada a cem anos de solidão.
Que dizer da bela cigana Esmeralda criada por Victor Hugo para ser a heroína de “O Corcunda de Notre Dame”? Que dizer da comparação feita por Machado de Assis envolvendo sua mais controversa personagem: “Capitu, apesar daqueles olhos que o diabo lhe deu… Você já reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e dissimulada”.
Para os mestres da literatura, o povo cigano sempre inspirou personagens que passavam uma imagem de mistério, mas, acima de tudo, de dúvida.
A percepção que o senso comum tem dos ciganos, no entanto, não costuma dar margem para dúvida alguma. A simples menção a eles já remete à construção de uma imagem saída diretamente daquele imenso leque de estereótipos que cada um de nós parece deixar sempre à mão para qualquer eventualidade.
Assim, por estes conceitos e preconceitos que nos orientam às vezes em escolhas tão simples como atravessar a rua ou continuar na mesma calçada dependendo de quem estará na esquina, os ciganos viram sinônimo de gente rude, suja, preguiçosa e traiçoeira, a vagar por aí em busca da próxima vítima de seus golpes, ou da próxima criança que será arrastada para dentro de um saco.
O número de ciganos que vivem no Brasil é estimado hoje em 600 mil. Aliás, a imagem que se tem deles por aqui não é menos caricaturesca do que em outros lugares: são vistos ou como trapaceiros, ou como inconvenientes irremediáveis.
Lembramo-nos deles pedindo para ler nossas mãos, ou como personagens que aparecem nos capítulos finais das telenovelas para predizer, pelas artes da quiromancia, o destino trágico dos vilões e mocinhos do momento.
Poucos sabem que este povo nômade, originário do norte da Índia, tem hino, bandeira e uma data internacional dedicada a eles, celebrada no dia oito de abril de cada ano, e instituída no primeiro Congresso Mundial Cigano, que teve lugar em Londres no ano de 1971. São pessoas com história, língua e cultura em comum, apesar da grande diversidade que existe entre eles próprios.
Talvez seja ainda menos conhecido o fato de que, no Brasil, exista oficialmente desde 2006 o Dia Nacional do Cigano: 24 de maio. No ano passado, durante as comemorações da data, o presidente da Associação de Preservação da Cultura Cigana (Apreci), Cláudio Domingos Iovanovich, disse que seu povo é o mais globalizado do planeta, mas do ponto de vista cultural, não econômico: “No mundo inteiro comemos as mesmas coisas, dançamos e cantamos as mesmas músicas”.
De fato. Os ciganos estão presentes em todos os países, à exceção do Japão. O mundo abriga hoje mais de dez milhões deles. São a maior das etnias apátridas da Europa. Não estão concentrados entre fronteiras quaisquer, e não têm um governo legítimo, ilegítimo, no exílio ou provisório. Ou seja, não têm governo. Não há instituições organizadas e representativas que lhes garantam direitos e lhes estipule deveres.
Na Europa existem hoje cerca de oito milhões de ciganos. Em outras palavras, pode-se dizer o seguinte: são ciganos demais para uma Europa em crise, cada vez menos benevolente com os seus próprios cidadãos, e muito menos amistosa quando se trata de lidar com pessoas que vivem por lá uma vida não ajustada aos padrões ocidentais, convictamente sem-teto, sem-pátria, e sem-religião.
Daí a serem confundidos com “vagabundos” ou criminosos em potencial, o caminho é mais curto do que se imagina. Em setembro deste ano, uma juíza de Portugal emitiu uma sentença contra quatro homens de etnia cigana na qual acusava-os de serem "pessoas marginais, traiçoeiras, e integralmente dependentes do Estado".
Na verdade, em momento algum a juíza Ana Gabriela Freitas generalizou suas considerações, não chegou a se referir aos ciganos como ciganos, mas apenas aos quatro réus acusados de um ataque a policiais portugueses dois anos atrás. O caso é que as adjetivações redigidas na sentença assemelham-se tanto ao que se costuma dizer dos ciganos que o episódio gerou muitas críticas por parte das entidades de defesa dos direitos humanos, e desencadeou um profundo debate sobre o futuro, em Portugal e numa Europa abraçada à modernidade, de um povo que vive intensamente a rotina de suas tradições milenares.
Recentemente, após o assassinato de uma italiana por um romeno de etnia cigana, o primeiro-ministro da Romênia chegou a falar na criação de uma espécie de zona de exclusão no Egito, no meio do deserto, a fim de mandar para lá: “todos aqueles que prejudicam nossa imagem”. Leia-se, os ciganos.
Este povo vem sendo visto pelos europeus cada vez mais como isto mesmo: um estorvo. Isto se traduz na hostilidade dirigida a eles pela população em geral e no descaso das diversas administrações nacionais européias diante de suas precárias condições de vida.
As estatísticas sobre eles são sempre incertas, seja porque não estão geograficamente concentrados, seja porque não facilitam a vida dos pesquisadores. Mas estima-se que a porcentagem de ciganos europeus que vivem abaixo da linha da pobreza seja maior do que o índice registrado entre os palestinos que vivem na Faixa de Gaza, que é de 52% – o maior medido em todo o mundo. A expectativa de vida dos ciganos que vivem na Itália é de incríveis 35 anos.
Diante de tanta precariedade, a esperança de um futuro digno poderia estar depositada na educação formal. Mas este é exatamente um dos pontos mais sensíveis da difícil relação dos ciganos com “o mundo lá fora”. Tudo indica que esta espécie de incompatibilidade objetiva com o século XXI reserve a eles um futuro, no mínino, ainda mais difícil.
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